sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

A doçura






Anita vende a doçura em frascos. Enche-os de compota de
fruta, tapa-os e cola-lhes uma etiqueta, mas, em vez de escrever compota
disto
ou compota daquilo, de mirtilos ou de pêssego, de marmelo ou de
morango,
arredonda a letra e escreve apenas Doçura. Senta-se no passeio
com
os frascos
defronte, expostos no asfalto, junto aos pés, e não
lhe
faltam
clientes. A
compota vende-se muito bem e ninguém regressa
para
reclamar:
quem compra julga
que a doçura está toda nos olhos de
Anita.
[...] Às
vezes, pensando nisto,
Anita ainda se entristece.
Olhando-a
a partir da
minha janela do país onde é
quase sempre
Inverno, vejo que
as estrelas se
lhe reflectem no orvalho dos
olhos.
Vejo isto e
enterneço-me. Daqui longe
fecho os meus olhos e sussurro bem
baixinho a
única verdade que existe –
para que ela a oiça: que não
há no mundo
todo
maior poema do que vê-la,
sentada no passeio, a
vender a Doçura que tem nos
frascos. E nos
olhos.


Manuel Jorge Marmelo, trechos do conto A doçura

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